Segunda-feira, 13 setembro, 2010, às 17:28
O símbolo criado para a Copa de 2014 causou um misto de repulsa e indignação; enquanto isso, o símbolo da Olimpíada de 2016 está prestes a sair do forno… O que podemos esperar dele? Outra surpresa desagradável? Ou um projeto tecnicamente correto e competente? Ou, quem sabe, o espanto da linguagem?
Aposto minhas fichas na coluna do meio: vem aí correção e competência. O que já é uma grande notícia para o design brasileiro. É verdade que poderemos ter outra má surpresa, mas acredito que não vamos perder dois jogos seguidos. Já o milagre – o projeto surpreendente, a subversão das expectativas, a invenção da linguagem – é incompatível com o próprio processo de escolha.
Em palavras mais fortes: um projeto surpreendente é inviabilizado pelos princípios do branding que comandam o processo de escolha da marca. Quando digo que o milagre não virá, não estou duvidando da capacidade dos designers selecionados para desenvolver as propostas. O ponto é outro: acredito que esses mesmos designers seriam capazes de propor projetos muito mais contundentes e inovadores se não estivessem engessados pelas leis que regem o branding e seus estratégicos arredores.
É uma pena que seja assim. As Olimpíadas trazem consigo muitas tradições; uma delas é exatamente apontar novos rumos para a linguagem gráfica. Vale a pena relembrar um pouco dessa história, que está devidamente registrada no livro História do design gráfico, de Meggs & Purvis (Cosac Naify, 2009).
Cinco marcos do design olímpico
Os Jogos Olímpicos são um espelho onde o design se mira a cada quatro anos. Seja por sua magnitude, seja por seu caráter peculiar, cada uma das edições olímpicas passou a indicar a vanguarda do pensamento do design de sua época. Algumas edições mais do que outras, claro. Os cinco marcos são Tóquio 1964, México 1968, Munique 1972, Los Angeles 1984 e Barcelona 1992. Meu coração bate mais forte pelo México 1968.
Tóquio 1964 é o ponto de inflexão. A identidade das edições anteriores tinha no cartaz de divulgação do evento a sua síntese visual. Kamekura é o responsável por propor pela primeira vez a ideia de um sistema de identidade visual regendo todo o processo.
A base foi o imponente símbolo composto pelo círculo vermelho da bandeira japonesa flutuando sobre os cinco aneis olímpicos. O design gráfico não seria mais o mesmo depois disso.
No México 1968, buscou-se desde o princípio uma referência à visualidade da tradição pré-colombiana, tão vital para a cultura mexicana. Um padrão de listras gerado a partir de um tipo filetado desdobrou-se numa infinidade de usos. O ponto a ser destacado é a fusão obtida entre as linguagens da tradição pré-colombiana e da op-arte, que naquele período estava em alta no circuito das artes visuais. Os designers souberam construir de maneira admirável uma região de intersecção entre ancestralidade e contemporaneidade. Não conheço nenhum outro projeto de vulto no campo do design visual que tenha sido tão bem sucedido na promoção dessa mútua fertilização.
Munique 1972 é o auge da linguagem modernista. Otl Aicher, ideólogo do movimento, põe em prática os princípios racionalistas no que eles podem ter de potência expressiva. A família de pictogramas, derivada de um grid cuidadosamente construído, tornou-se um ícone universal de signos esportivos. Os cartazes — na verdade, todo o imenso conjunto de itens produzidos — mostram o quanto os rigores modernistas podem ser flexibilizados quando operados por um mestre, que sabe colocar as normas a seu serviço, e não tornar-se refém delas.
Los Angeles 1984 é a estreia em escala global do pós-modernismo no design gráfico. O símbolo dessa edição dos jogos, que ficou conhecido como “estrela em movimento”, convive com uma infinidade de outros grafismos em diversas escalas, cores e formas. Ao invés de unidade, desta vez temos a diversidade programada.
Para completar o grupo, Barcelona 1992 avança ainda mais na subversão das regras. É um legítimo sistema gráfico, mas a liberdade a que ele se permite inclui altas doses de iconoclastia. Ao invés de balizar-se pelo gosto médio internacional, a opção foi apostar nas raízes da cultura catalã. A obra de Miró foi tomada como referência, e a ela foi agregada a colaboração preciosa do então jovem designer Javier Mariscal. Para surpresa de muitos, seu desenho rabiscado, com ares de garatuja, conquistou o público do mundo todo. O simpático mascote Cobi ainda é lembrado, tantos anos depois. Barcelona 1992 representa o retorno em grande estilo do desenho autográfico ao coração da linguagem do design gráfico.
É quase inacreditável colocar lado a lado os pictogramas de Munique 1972 e Barcelona 1992: em vinte anos, o paradigma de excelência foi simplesmente invertido. E o mais curioso é constatar que isso ocorreu no evento de maior visibilidade do planeta, numa operação que envolve um astronômico volume de investimentos.
Apostas radicais e branding de segurança
O que é comum a esses cinco projetos? A radicalidade das escolhas. Em cada um deles, não se buscou o conhecido, o estabelecido, o consensual. Caminhos já trilhados foram evitados, as apostas recaíram em propostas fortes, formuladas por profissionais qualificados, dedicados integralmente à tarefa. Os respectivos comitês organizadores tiveram a sabedoria de aliar segurança e risco. Japão, México, Alemanha, EUA, Espanha: cada país soube colocar a dimensão cultural em primeiro plano – cultura visual, cultura de design. Cada um conseguiu, à sua maneira, mostrar-se ao mundo como uma nação maiúscula, soberana. E todas elas respirando contemporaneidade – nos cinco projetos, não se vê sombra de visões folclorizantes.
E onde entra o branding nessa história? Ora, o branding não seria exatamente o campo de conhecimentos capaz de articular projetos com essa abrangência? Seria, mas não é.
O branding é fruto da lógica corporativa. Numa Olimpíada, estamos falando de esfera pública. Sempre é bom lembrar que nem tudo que é bom para o setor privado é bom para o setor público. (O que é bem diferente de dizer: ‘Se é bom para o setor privado, é ruim para o setor público’.) Aplicar o pensamento estratégico do branding na construção da identidade olímpica é projetar a lógica corporativa sobre a esfera pública.
No branding, não há espaço para a invenção; os resultados devem ser imediatos, objetivamente verificáveis. Melhor: mensuráveis. Ser mensurável é fundante no branding. Como a invenção não é mensurável…
Responderão os defensores do branding: “Errado! Um dos critérios a serem contabilizados na composição da nota de cada proposta é justamente a “originalidade da solução”. Esse critério contempla a manifestação da invenção, devidamente colocada a serviço dos objetivos estratégicos a serem alcançados”.
Critérios, contabilização, nota… Isso mesmo, estamos de volta à mensurabilidade: um elenco de critérios, os mais objetivos possíveis, que são contabilizados numa nota final, com o objetivo de obter do público-alvo as respostas adequadas frente aos objetivos estratégicos pretendidos. Captei a mensagem.
Noves fora: lá vamos nós com mais do mesmo.
Falei acima que Otl Aicher soube colocar as normas a seu serviço, evitando tornar-se refém delas. (Aliás, os mestres maiores se caracterizam exatamente por saber flexibilizar os próprios princípios que defendem. Já seus seguidores… que tristeza, costumam ser mais realistas do que o rei.) As leis do branding, defendidas com ardor pelos assim chamados “pensadores estratégicos” muitas vezes acabam trabalhando contra seus próprios objetivos. Antes mesmo de começar, o receituário já está pronto, a história já está contada, os conceitos já estão todos em seus devidos lugares, o projeto já está formatado. É o branding de segurança. Sem riscos.
Como foi dito no início deste texto, acredito que teremos um símbolo olímpico correto e competente, o que por si só é uma notícia auspiciosa para o design brasileiro. No entanto, fica o gosto amargo de deixarmos passar duas chances seguidas de pensar com nossas próprias mãos.
*Chico Homem de Melo é designer e professor da FAU-USP. É sócio da Homem de Melo & Troia Design e publicou Os desafios do designer (Rosari, 2003) e Signofobia (Rosari, 2005), além de organizar o volume O design gráfico brasileiro: anos 60 (Cosac Naify, 2006)
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